As ruas têm alma, já dizia o escritor e jornalista João do Rio, no início do século passado. Especialista em flanar, que ele explicava ser “perambular com inteligência”, ele é autor de “A Alma Encantadora das Ruas”. Nele, o autor explica: “Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames…” E os versos se aplicam muito às ruas paulistanas.
Carioca, ele trata das ruas da cidade em que viveu. Mas esteve em São Paulo e seus textos, organizados no volume “Um Dândi na Cafelândia”, retratam o rápido crescimento da metrópole nas primeiras décadas do século XX, a partir da chegada dos imigrantes e da industrialização.
A Rua Avanhandava e Três Rios, com certeza, seria um dos assuntos retratados pelo jornalista, se este tivesse tido a oportunidade. Conheça mais sobre essas ruas paulistanas a seguir.
Ruas paulistanas: Avanhandava x Três Rios
Morto prematuramente em 1921, aos 39 anos, João do Rio possivelmente jamais flanou pela Rua Três Rios, no Bom Retiro, na época um bairro eminentemente de trabalhadores imigrantes. Seus olhos em São Paulo se voltaram mais para ambientes elegantes da cidade, como o Horto Florestal, o Hipódromo da Mooca e o Automóvel Club.
Oficialmente, a Três Rios existe desde 1916. O grande cronista do Bom Retiro naquela época, no entanto, foi outro, Juó Bananere. O autor, pseudônimo do Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, levou para a literatura a incorporação da maneira dos imigrantes falarem a língua falada no Brasil. “Tegno sodades dista Paulicéia/Desta cidade qui tanto dimiro!/Tegno sodades disto çéu azur,/Das belas figlias lá du Bó Ritiro”, em trecho retirado do seu livro “La Divina Increnca”.
Seria mais impossível ao escritor carioca ter conhecido a Rua Avanhandava, na República, que só foi oficializada em 1929, após sua morte. Mais nova, suas histórias também vêm depois. Tornou-se um reduto da boemia paulistana a partir do final dos anos 1960, quando a cantina Gigetto se mudou para o número 63 da rua.
Cantina Gigetto
O Gigetto foi criado em 1938 e é considerado o precursor da cultura de cantinas na cidade. Muitos donos de cantinas, como Giovanni Bruno, foram funcionários lá antes de criar seus próprios restaurantes.
Entre seus frequentadores estavam atores como Paulo Autran, escritores como João Antônio, Ignácio de Loyola Brandão e Antônio Torres, o jornalista Audálio Dantas e o dramaturgo Plínio Marcos. O último, aliás, tinha uma mesa cativa no restaurante. Lá, segundo as lendas, jantava todas as noites, mesmo quando não tinha dinheiro para pagar.
Casa do Povo
Nos anos 1960 e 1970, a Rua Três Rios também tinha sua efervescência, muito em função da Casa do Povo, instituição fundada por judeus progressistas em 1953. O local foi, desde sua fundação, um importante centro de difusão da cultura e do idioma iídiche, dos judeus asquenazes (da Europa Central e Oriental).
No prédio, funcionava um teatro e o jornal Nossa Voz, ambos neste idioma, além de diversas associações culturais e de moradores do bairro. O prédio, do arquiteto Ernest Carvalho Mange, foi construído como uma homenagem viva às vítimas dos campos de concentração nazista.
Não que fosse pouca coisa, mas a história da Casa do Povo vai muito além disso. Em seu térreo, em 1960, foi fundado em seu formato definitivo, o Teatro de Arte Israelita Brasileiro, o TAIB. O projeto do teatro é do arquiteto Jorge Wilheim, com murais de Renina Katz, boca de cena de Abrahão Sanovicz e painéis de Gershom Knispel.
O local foi um importante foco nas artes da resistência à ditadura militar. Augusto Boal, Plínio Marcos, Antônio Abujamra, Renato Borghi, Dina Sfat e Gianfrancesco Guarnieri foram alguns dos grandes nomes da época a passar por seu palco, que foi usado diversas vezes pelo Teatro de Arena.
No prédio, também funcionou o Ginásio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem, uma das primeiras escolas de pedagogia progressista da cidade, cujo nome homenageava um dos mais notáveis escritores no idioma iídiche. A escola deixou de existir em 1981, no começo da década que também marcou o enfraquecimento do teatro e a Casa do Povo em si.
Oficina Cultural Oswald de Andrade
Na mesma década, em sentido oposto, foi inaugurada na rua a Oficina Cultural Oswald de Andrade, em homenagem ao grande escritor modernista.
O prédio escolhido é tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephatt) e pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp).
Com forte inspiração neoclássica, o prédio que recebe a oficina cultural foi, no início do século passado, a Escola de Farmácia de São Paulo.
Reconhecimento turístico e internacional das ruas paulistanas
A retomada da Casa do Povo a partir da década passada, com atividades culturais, esportivas e políticas e a manutenção da Oficina Cultural foram fundamentais para que a Time Out, revista britânica reconhecida por ser um guia para as melhores atividades em cidades de todo o mundo, colocasse a Três Rios em sétimo lugar entre as ruas mais legais do mundo.
Um verdadeiro oásis no meio do movimentado Bom Retiro, ela também simboliza uma mistura entre novas e antigas tradições. Bem em frente à Casa do Povo, por exemplo, fica o supermercado Otugui, que se intitula como o maior importador e distribuidor de alimentos coreanos no Brasil.
Mesmo sem um reconhecimento internacional tão poderoso, a Rua Avanhandava se tornou um símbolo da recuperação do centro. O empresário Walter Mancini, dono de diversos bares e restaurantes no primeiro quarteirão da rua, conseguiu uma autorização especial da Prefeitura na primeira década deste século para dar uma pitada italiana para este trecho da rua.
Com uma fonte, jardineiras, uma iluminação especial e um piso de pedras, transformou a rua em um ponto de atração turística que remete à tradição do país mediterrâneo, assim como seus restaurantes.
Em comum, além do título de ruas turísticas, as duas guardam uma relação com a cultura judaica. Na esquina da Avanhandava com a Martinho Prado, fica o Museu Judaico de São Paulo, inaugurado no ano passado.
O museu fica no prédio da antiga Sinagoga Beth-El, projetada e construída por Samuel Roder entre 1927 e 1932. A edificação, em estilo bizantino e possui 7 lados, o que remete à numerologia judaica. Além de objetos da cultura judaica, o centro cultural tem exposições e outras atividades culturais. O templo é tombado pelo Conpresp desde 2013.
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