É impossível falar do centro de São Paulo sem citar em algum momento o Minhocão, a via elevada que ao longo de décadas manteve a capacidade de estabelecer renovadas controvérsias em matérias de urbanismo e mobilidade.
Com os dias contados como solução de tráfego para veículos, a disputa está entre os que querem a sua demolição e os que defendem a consolidação do local como uma área de lazer. Argumentos de lado a lado não faltam e até existe uma proposta de plebiscito para que a população decida qual deve ser o destino da edificação.
Mas muito além das polêmicas, esta pista elevada é histórica para a cidade, contando suas fases e evolução. Conheça mais do Minhocão a seguir.
A construção do Minhocão
Inaugurado em 1971, pelo então prefeito biônico (nomeado sem o voto popular) Paulo Maluf, o elevado demorou apenas 14 meses para ser construído, ligando a Praça Franklin Roosevelt, inaugurada no ano anterior, na região central, ao Largo Padre Péricles, na zona oeste.
O viaduto, assim como a Praça Roosevelt, foi projetado durante a gestão do antecessor de Maluf, o engenheiro José Vicente de Faria Lima. Ambos seguiam um discurso forte durante a ditadura cívico militar, que salientava o progresso a qualquer custo em uma cidade então voltada para o deslocamento individual motorizado, em detrimento dos pedestres e do transporte coletivo.
Não por acaso, as duas obras seriam alvos de críticas semelhantes, por provocarem a deterioração urbana em seus entornos. A praça de concreto, sem árvores e com uma garagem subterrânea, e a via elevada que corta os bairros da República, Vila Buarque, Campos Elíseos, Santa Cecília e Água Branca formam o que os urbanistas chamam de “cicatriz urbana”.
São 3,4 quilômetros de asfalto, contando a pista principal e seus acessos, e uma altura média do solo de 5,5 metros. Na primeira década dos anos 2000, a Roosevelt passou por uma grande reforma que retirou parte das edificações e a tornou mais plana e um pouco arborizada, ganhando equipamentos de lazer, iluminação e uma base da Guarda Civil Metropolitana (GCM).
Se a praça chegou a ser inaugurada a toque de caixa no fim da gestão de Faria Lima (o projeto original jamais seria concluído), o elevado acabou indo para alguma gaveta, onde ficou por pouco tempo.
Quando assumiu o cargo, Maluf tratou de tocar rapidamente o projeto. A proximidade da sede da Eucatex, empresa da família do então prefeito, no Largo Padre Péricles, fez com que a via ganhasse na época o apelido de “Estrada da Serralheria”, uma crítica bem-humorada a um suposto interesse pessoal na obra.
A conclusão foi comemorada com um passeio de carro de Maluf por toda sua extensão. O nome foi escolhido para agradar o poder federal: Elevado Costa e Silva. Uma homenagem ao general presidente que escolheu Maluf para administrar a cidade.
Primeiros embates com a população
A lua de mel dos paulistanos com a obra foi breve, apesar de reconhecida a sua importância para a redução do trânsito na região central. Em 1976, aparecem as primeiras críticas. Foi o primeiro momento em que a via foi fechada ao trânsito noturno de carros.
Como as desapropriações no entorno não ocorreram, as poluições do ar e sonora provocadas pelo tráfego resultaram na extrema desvalorização dos imóveis – algumas janelas e sacadas ficam a menos de 3 metros da pista. Prédios de valor histórico e urbanístico foram alvos dessa depreciação, alguns deles projetados por arquitetos icônicos, como Artacho Jurado e Rino Levi.
Com carros em alta velocidade durante a madrugada, surgiu também o risco de acidentes graves. O cenário apocalíptico chegou a ser explorado no filme “Ensaio sobre a Cegueira” (2008), baseado no livro homônimo de José Saramago e que Fernando Meirelles dirigiu com elenco hollywoodiano.
Uma nova roupagem para o Minhocão
Uma lei aprovada em 1996 estabeleceu que o Minhocão deveria permanecer fechado para o trânsito de veículos durante a noite e aos domingos e feriados. Na época, o fechamento era mais uma questão de saúde dos moradores do entorno, impactados pelo barulho da madrugada. A possibilidade de utilização da área para lazer só seria considerada nas décadas seguintes.
Apesar de o apelido ser mais reconhecido, nem por isso o nome oficial escapou. Na década passada como consequência da Comissão da Verdade na Câmara Municipal, foi decidido que a via não poderia homenagear um ditador.
No âmbito do Programa Ruas da Memória, foi aprovada e sancionada pelo então prefeito Fernando Haddad que a via passasse a se chamar Presidente João Goulart, deposto pela ditadura. A decisão até hoje provoca críticas.
Também na gestão Haddad, em 2014, o Plano Diretor, sob a relatoria do urbanista e então vereador Nabil Bonduki, propôs a gradativa desativação do Minhocão para o tráfego motorizado.
A restrição definitiva já seria polêmica em si, afinal, mais de 70 mil veículos percorrem a via diariamente. Mas o fechamento também coloca duas correntes em disputa pelo futuro da edificação: os que defendem a demolição e os que preferem sua transformação em um parque linear.
A associação que defende a criação do parque havia sido criada no ano anterior, baseada no uso que o elevado recebeu ao longo dos últimos anos durante a noite e fins de semana. Atividades esportivas, de lazer, artísticas e culturais passaram a ser comuns.
Ciclistas, skatistas, pessoas passeando com cachorros ou simplesmente tomando sol entraram no cenário. A adaptação foi inspirada em projetos desenvolvidos no exterior, como a High Line, em Nova York, e o Coullée Verte René-Dumont, em Paris.
A ideia de manter a edificação e alterar seu uso também é sustentada com base nos custos econômicos e de organização urbana para a demolição. Afinal, além das diversas interdições necessárias para o desmanche, seria preciso dar um destino às milhares de toneladas de cimento, ferro, aço e concreto que sustentam a via. Todavia, os defensores da retirada total da estrutura alegam que os custos de manutenção continuariam altos ao longo do tempo.
Hoje, o elevado tem problemas sérios com infiltrações e iluminação no trecho inferior. Os principais argumentos favoráveis à demolição são, no entanto, que o parque, mesmo sem o tráfego, continuaria sendo um incômodo aos moradores do entorno.
A desativação não resolveria os problemas de tráfego, podendo até aumentá-los. Assim, o Minhocão se mostra inevitável aos paulistanos até que estes decidam seu destino.
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